Tag: Crianças e Adolescentes

  • Conselho tutelar pode ser diferença entre vida e morte, diz ministério

    Conselho tutelar pode ser diferença entre vida e morte, diz ministério

    Neste domingo (1º), eleitores de todos os municípios brasileiros irão às urnas para escolher seus representantes nos 6,1 mil conselhos tutelares existentes no país. No total, 30,5 mil conselheiros serão escolhidos, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Os conselheiros e conselheiras tutelares são eleitos com a missão de garantir que os direitos de crianças e adolescentes sejam respeitados. Existentes há mais três décadas, os conselhos foram criados a partir de uma determinação prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

    Em entrevista à Agência Brasil, o coordenador-geral de Fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos do MDHC, Diego Alves, destacou a importância da mobilização popular para a escolha dos conselheiros e conselheiras tutelares.“A escolha do conselheiro tutelar mais adequado simplesmente pode ser a diferença entre a vida e a morte de quem precisa desse atendimento. É desse nível de importância que a gente está falando. A criança que está sofrendo violações com reiterado estado de violência, de negligência e que não tem o atendimento adequado ou que é atendida por um conselheiro que não está capacitado, que não é a figura adequada para fazer esse atendimento, pode acabar até mesmo morrendo”, disse.

    Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

    Agência Brasil: Qual a importância desta eleição de domingo para conselheiros tutelares?
    Diego Alves: Bom, o Conselho Tutelar é um órgão essencial para crianças e adolescentes. Não é à toa que, quando se cria o Estatuto da Criança e do Adolescente, você cria esse órgão que é para ser o fiscalizador da garantia dos direitos. Ele é o representante de cada comunidade, de cada cidade para ver se os direitos da lei previstos no estatuto estão sendo garantidos ou não, se não estão, para articular todo o sistema de garantia em torno dele e defender e efetivar esses direitos. Então, é um órgão absolutamente essencial para as crianças e adolescentes. E não só isso, ele é um órgão democrático. Ele é previsto para ser eleito pela sociedade, justamente para representar a vontade daquela comunidade e as pessoas mais qualificadas, engajadas referenciadas pela sociedade a atuar em nome dela na garantia dos direitos das adolescentes, para atender às crianças, orientar as famílias e articular a rede. É uma liderança comunitária muito importante e presente em todas as cidades do Brasil. É algo de muita capilaridade.

    Agência Brasil: Como o governo está acompanhando as eleições no país?
    Alves: O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, por meio da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, tem acompanhado muito de pertoessas eleições ao longo de todo ano. No ano passado, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente já emitiu uma resolução sobre o processo de escolha deste ano buscando melhorias, para transcorrer de uma forma mais correta, mais transparente e mais alinhada com o que é o objetivo do estatuto. Este ano, o ministério teve uma série de ações. Primeiramente, lançou um guia para os conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente, que é o órgão responsável por organizar a eleição. Tem esse guia aqui assinado pelo ministério de forma a orientar os conselhos de direito. Além disso, o ministério também criou um grupo de trabalho para acompanhar diretamente esse processo de escolha em todas essas etapas. Está funcionando durante todo este ano, e ao final, vai até emitir um relatório propondo melhorias no processo de escolha, porque a gente acha que tem muito a ser melhorado. O ministério tem se engajado com muita dedicação nas informações para a sociedade visando mobilizar e convencer as pessoas da importância de votar, já que essa é uma eleição facultativa, não é obrigatória. Aproveitando esse momento para convencer e trazer informação para as pessoas sobre os direitos da criança e do adolescente e sobre o Conselho Tutelar, que precisa ser muito mais conhecido, fortalecido e valorizado pela sociedade. Além disso, a gente provocou o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] para participar mais ativamente do processo e resultou numa resolução do TSE, de junho, que disciplinou o fornecimento das urnas eletrônicas para utilização nessas eleições, o que é uma vitória histórica. Este ano a gente deve ter o maior número de urnas eletrônicas usadas pelo maior número de cidades, o que vai favorecer o comparecimento, a transparência e a agilidade da votação.

    Agência Brasil: Por que o brasileiro deve sair de casa para votar em um conselheiro tutelar? O que isso muda na vida do cidadão e da sociedade?
    Alves: Olha, a escolha do conselheiro tutelar mais adequado simplesmente pode ser a diferença entre a vida e a morte de quem precisa desse atendimento. É desse nível de importância que a gente está falando. A criança que está sofrendo violações com reiterado estado de violência, de negligência e que não tem o atendimento adequado ou que é atendido por um conselheiro que não está capacitado, que não é a figura adequada para fazer esse atendimento, pode acabar até mesmo morrendo, como vários casos que a gente já viu. Vamos lembrar de um caso que teve muita repercussão da menina Sophia, em Campo Grande. Ela foi atendida por reiterados órgãos, entre eles o Conselho Tutelar, e ninguém foi capaz de identificar a violência que ela estava sendo submetida até que ela faleceu. [Sophia, de 2 anos, foi morta pela mãe e padrasto. Ela tinha sido atendida pelo menos 30 vezes em unidades de saúde].

    Agência Brasil: Em sua avaliação, qual o perfil ideal de um conselheiro tutelar?
    Alves: Os requisitos que o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem, como mínimos, para contemplar são três: idade superior a 21 anos; residir no domicílio onde vai se candidatar, ou seja, morar na cidade onde vai ser conselheiro tutelar, isso mostra o vínculo com a comunidade, o que é imprescindível; e a idoneidade moral, é necessário que não tenha nada no histórico que o impeça de exercer esta função. Tem que ser uma pessoa de confiança. Mas para além desses requisitos que o estatuto prevê, as prefeituras, as leis municipais podem estabelecer mais critérios, inclusive o Conselho Nacional dos Direitos Humanos recomenda também a exigência de experiência prévia naatuação com a promoção, defesa e garantia do direito, de tenha tempo de atuação em algum serviço público municipal e ou estadual que atenda crianças e adolescentes, de acolhimento, socioeducativa e de profissionalização, que trabalha com crianças e adolescentes. É muito importante que tenha essa experiência e também hoje em dia precisa de ter um conhecimento técnico para lidar com a legislação, com as normas, com o sistema de garantia de direito. Em muitos casos, o conselheiro também deve demonstrar esse conhecimento por meio de provas que muitos municípios aplicam.

    Agência Brasil: Quais são os principais desafios dos conselhos tutelares?
    Alves: O conselho tutelar tem muitos desafios. E o primeiro é ser mais reconhecido, valorizado e fortalecido pela sociedade. Os conselhos tutelares têm que atuar com muita diligência, muita dedicação de cumprimento das suas atribuições na forma da lei, inclusive porque tem sido muito deturpada. Pouca gente conhece e às vezes desvia dessa função, chegando inclusive a casos em que conselheiros violam direitos em vez de garanti-los. A gente vive uma realidade de muitas violações de direito no Brasil. Crianças fora da escola, de trabalho infantil, de violência, em especial da violência sexual enorme, que precisa ser combatida. Precisa ser uma atuação muito decisiva dos conselhos, que são órgãos mais presentes na comunidade para atender, identificar, denunciar, atuar na responsabilização e na defesa dessas vítimas.

    Agência Brasil: Quais políticas públicas o governo tem elaborado para formação dos conselheiros?
    Alves: O Ministério dos Direitos Humanos está voltando uma política de formação, que é a escola de contextos. Uma política que já foi implementada em alguns momentos, mas agora a gente está retomando, porque acha que esses conselheiros precisam de formação continuada, como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, e que seja presencial e integrada entre os conselhos tutelares com demais órgãos do sistema de garantia de direitos, que atuam juntos atendendo crianças e adolescentes. Essa rede de atendimento precisa ser fortalecida como uma formação conjunta para todos. Este ano, o ministério deve investir mais de R$ 5 milhões na retomada desse programa, esperando conseguir colocar cada vez mais recurso nesse projeto e assim estruturar um órgão em todos os estados do Brasil, para que seja uma estrutura centralizadora da formação de referência. Além disso, a gente segue disponibilizando cursos online na Escola Nacional de Direito da Criança e do Adolescente, que podem ser acessados por qualquer um a qualquer tempo.

    Agência Brasil: Como é o orçamento de um conselho tutelar? Há previsão de aporte adicional?
    Alves: O orçamento do Conselho Tutelar é vinculado à prefeitura. É bom lembrar que o conselho é um órgão vinculado à administração pública municipal pelo que está na lei. Cada município deve prever no seu orçamento os recursos para o funcionamento. Aindaassim, o governo federal tem trabalhado muito para apoiar esses conselhos tutelares, com aporte de equipamentos que está sendo reformulado e fortalecido, com fornecimento de carros, computadores, impressoras e outros bens para serem utilizados nos atendimentos e fortalecer o órgão. A partir da realidade brasileira, vamos começar a entregar também barcos e carros com tração, que possam andar nas áreas rurais. Futuramente, a gente gostaria muito de conseguir o cofinanciamento do sistema de garantia de direitos, estamos trabalhando para ver se é possível. Mas o governo federal tem toda a intenção de contribuir com as prefeituras nessa política, assim como acreditamos que os estados também devem se envolver e apoiar o sistema de garantia de direitos.

    Agência Brasil: Como o senhor vê a questão da politização das eleições do conselho? Pessoas ligadas a políticos ou que usam o conselho tutelar como trampolim para uma carreira política?
    Alves: É bastante problemático na medida em que a intenção da pessoa ao se candidatar não é exatamente a defesa dos direitos da criança e do adolescente, isso acaba resultando em uma atuação enviesada, atuação violadora de direitos. É importante dizer que não há qualquer problema nas pessoas terem vinculação partidária, dedicação a um partido, qualquer religião, qualquer grupo desde que a sua atuação seja conduzida pela lei e não pelas suas crenças pessoais, ou seja, desde que o interesse da criança venha primeiro, não há problema pessoas de qualquer religião, de qualquer partido e ter um bom conselho tutelar, inclusive há inúmeros casos de pessoas vinculadas a partidos e às mais diversas religiões que são excelentes conselheiros tutelares, porque sabem diferenciar a sua atuação pessoal da atuação no conselho, porque sabem que precisam ter uma atuação profissional e estritamente legal. A gente tem identificado, tentado adotar medidas para evitar abuso do poder político, do poder religioso nas eleições pelas resoluções do Conanda, que é o Conselho Nacional das Crianças e dos Adolescentes. De fato, é um problema que só vai ser resolvido quando a sociedade quiser mobilizar-se para votar pelas pessoas que vão defender o direito das crianças e adolescentes, e não por qualquer outro motivo.

    Edição: Juliana Andrade
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  • Saiba como votar na eleição para conselhos tutelares no domingo

    Saiba como votar na eleição para conselhos tutelares no domingo

    Eleitores de todos os municípios brasileiros podem ir às urnas, neste domingo, dia 1º de outubro, para escolher seus representantes nos 6,1 mil conselhos tutelares. Ao todo, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), serão escolhidos 30,5 mil conselheiros entre os candidatos para os postos.

    Eleitores que estão em situação regular na Justiça Eleitoral podem votar normalmente. Para exercer esse direito, basta se apresentar com CPF, documento original com foto (físico ou eletrônico) e comprovante de residência. Jovens entre 16 e 17 anos também podem votar. Para isso, os mesmos documentos precisam ser apresentados, com o comprovante de residência associado ao nome dos pais ou responsáveis legais.

    Os locais de votação para conselheiro tutelar não são todos iguais aos das eleições gerais. Como se trata de um processo menor, as zonas eleitorais foram agrupadas. As consultas sobre o local de votação e os candidatos podem ser feitas junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de sua cidade. Os eleitores também podem procurar diretamente a prefeitura de seu município para obter essas informações.

    Os conselhos tutelares, que existem há mais de três décadas, foram criados com base na Lei Federal nº 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com a função de garantir o cumprimento dos direitos dos cidadãos com menos de 18 anos.

    Cada Conselho Tutelar é formado por cinco membros escolhidos pela população local, que atuam de forma colegiada, de acordo com as atribuições estabelecidas, principalmente, no Artigo 136 do ECA.

    Diferentemente das eleições municipais, estaduais e federais, a participação do eleitor é facultativa, o que faz com que, historicamente, esses pleitos tenham um baixo comparecimento de eleitores.

    Esta semana, a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNDCA), vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, expediu ofício recomendando que todos municípios disponibilizem transporte público gratuito para a eleição dos novos conselheiros tutelares. A recomendação solicita também que o serviço seja mantido em níveis normais, assim como dos dias de semana, na quantidade e frequência necessárias ao deslocamento dos eleitores, na data do pleito.

    Uma novidade destas eleições de conselheiros tutelares é que, pela primeira vez, serão usadas urnas eletrônicas em todo o território nacional. Os equipamentos serão emprestados pelos 27 tribunais regionais eleitorais (TREs).

    Segundo a legislação, os conselhos tutelares são considerados órgãos permanentes e autônomos, não jurisdicionais, e encarregados pela sociedade de zelar pela garantia e defesa dos direitos das crianças e adolescentes por parte da família, da sociedade em geral e, principalmente, do poder público, notadamente em âmbito municipal, fiscalizando a atuação dos órgãos públicos e entidades governamentais e não governamentais de atendimento a crianças, adolescentes e famílias.

    Edição: Juliana Andrade
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  • Mães se mobilizam por direitos de crianças e adolescentes trans

    Mães se mobilizam por direitos de crianças e adolescentes trans

    A comunicóloga Thamirys Nunes já havia se conscientizado de que precisava apoiar sua filha trans. Seu companheiro e pai da criança, também. Mas se dentro de casa estava garantido que o crescimento de sua filha contaria com amor e suporte de que toda criança necessita, a mãe logo compreendeu que, do lado de fora, havia muitas ameaças para que Agatha, hoje com 8 anos, pudesse viver sua identidade plenamente.

    “No Paraná, naquela época [2019], não podia ter nome social de crianças trans no RG, só no de adultos. E eu fui fazer uma viagem de carro para São Paulo e tive que voltar de ônibus. No embarque, o motorista falou que aquele documento que eu tinha não representava a criança que estava comigo. Eu falei que ela é uma menina trans, mas ele insistiu que o documento era de um menino, e que eu estava com uma menina. Enfim, foi uma hora e meia de gritaria na rodoviária, tendo vários problemas e dificuldades, até sendo acusada de ter sequestrado ela”, lembra Thamirys. “Eu comecei a entender que algumas coisas são muito específicas da pauta da criança e do adolescente trans, e que ainda não tínhamos nenhum olhar sobre isso.”

    Essa consciência foi se somando a uma percepção de que mesmo a rede de proteção à criança e ao adolescente e as entidades de defesa dos direitos LGBTQIAP+ não estavam preparadas para orientar mães de crianças trans a lidar com dificuldades do dia a dia, que podem ir da matrícula à escola a um embarque para viajar, como no exemplo relatado. Thamirys conta que foi denunciada para o conselho tutelar por uma unidade básica de saúde, que a acusou de induzir a identidade de gênero de sua filha. Depois disso, cinco escolas negaram a matrícula dela, porque disseram que não aceitavam crianças trans. Ao tentar denunciar ofensas à polícia, a ativista lembra ter ouvido do delegado que se tratava de um insulto simples, e que não era transfobia porque ela não era uma pessoa trans. Ficou cada vez mais explícito que aceitar a ausência de direitos não era uma opção.

    “A gente entendeu que isso era tão essencial para a qualidade de vida da minha filha como ter comida em casa”, resume ela, que lançou o livro Minha Criança Trans?, em 2020. “Muita gente chegava para mim e perguntava: ‘você já tentou isso? Você já tentou aquilo?’ E eu queria que as pessoas soubessem que eu já tinha tentado tudo, e que, de fato, eu tinha uma criança trans. Não era modinha, não era um desenho, nem era nenhuma influência externa.”

    Minha Criança Trans

    A publicação do livro fez com que outras mães e pais se aproximassem, criando uma comunidade que começou ao redor das discussões escritas por ela, mas ganhou forma como espaço de mobilização política até que, no ano passado, Thamirys e um grupo de 580 famílias fundaram a organização não governamental Minha Criança Trans.

    “Eu não fiz porque eu sou legal. Eu fiz porque ninguém tinha feito. Eu fiz por necessidade. Eu fiz porque eu tenho medo que a minha filha morra. Eu fiz porque eu não quero mais ser acusada de sequestro. Eu fiz porque nenhuma mãe tem que ser denunciada ao conselho tutelar por isso. Então, eu não fiz porque eu sou uma mãe legal. Eu fiz porque eu sou mãe desesperada, e é desse lugar que o meu ativismo funciona, do desespero”, desabafa. “As pessoas muitas vezes não entendem e falam assim: ‘ah, mas a sua filha tem sorte, ela tem pais que a acolheram como vocês, que têm uma boa condição de vida. Para quê fazer essa luta toda?’ E é porque a minha filha não precisa de sorte, a minha filha precisa de direitos, porque a sorte acaba.”

    Escuta e pesquisa

    Para se preparar para a militância, Thamirys, uma mulher branca, heterossexual, cisgênero e de classe média, conta que precisou ouvir muito, conhecer outras pessoas trans e estudar o tema com profundidade. E a posição de privilégio permitiu que ela se dedicasse integralmente a isso. “Minha família, até a chegada da minha filha, era uma família extremamente cis-hétero. Eu não tinha envolvimento com amigos LGBTs, e a primeira pessoa trans que eu conheci foi a minha filha. Então, eu tive também esse processo de descoberta”, conta ela, que se pautou principalmente pela escuta para formar sua convicção de que tinha uma filha trans.

    “Eu procurei um especialista em crianças trans e perguntei se a minha filha era. Ele respondeu: ‘não sou eu que vou falar isso, quem vai falar isso é ela. Eu só vou te ensinar a escutar’. Eu sei que a minha filha é uma criança trans porque eu escuto a minha filha, eu observo a minha filha e estou aberta ao que ela me traz. Quando uma criança chega para você, com 3 anos e 11 meses, e fala ‘mamãe, eu posso morrer hoje para nascer uma menina amanhã?’ Como não escutar isso, como você não presta atenção a uma criança que diz ‘mamãe, sabe o que é triste? É triste que Deus não me fez menina. A vida seria muito mais legal se eu fosse uma menina’. Então, se você escutar isso, você tem que prestar atenção e pensar no porquê desse lamentar, no porquê desse pesar. Aonde isso quer chegar. Minha convicção está no bem-estar da minha filha. Eu tinha um menino triste, amuado, calado. E eu tenho uma menina viva, feliz, confiante. É dela que vem, e enquanto ela estiver bem, enquanto isso fizer sentido para ela, estarei com ela.”

    Famílias de todo o país

    Thamirys preside a ONG e tem contato com famílias do Brasil inteiro, com crianças e adolescentes de 4 a 18 anos, incluindo pessoas de diferentes raças, religiões e pessoas com deficiência. Ela lamenta, no entanto, ainda não conseguir chegar a tantas famílias em situação de mais vulnerabilidade econômica e ter reunido mais famílias de classe média e média alta em sua caminhada.

    “Temos famílias com vulnerabilidade econômica, mas temos uns 60% que são de classe média e classe média alta. Queremos virar esse jogo e estamos pensando em projetos e articulações”, conta. “As mães chegam até nós com muitas dúvidas e inseguranças, em um processo ainda de muita dor. A grande maioria tem medo de deixar a transição acontecer e o filho sofrer violência. E é preciso perguntar: ‘você não acha que ele já não está vulnerável? Ele está vulnerável e dentro de um armário em que não cabe. É uma dupla violência’. Muitos pais negam a transição por medo, pensando que vão manter o filho seguro. Eu não condeno e compreendo, mas a gente tem que fortalecer esses pais para que eles entendam que a violência tem que ficar da porta para fora de casa, e negar a identidade de um filho também é uma violência.”

    Entre as mães que procuram a ONG, raramente há casos que chegaram ao extremo de terem expulsado seus filhos trans de casa, história de vida relatada com frequência na comunidade trans. Por outro lado, é frequente que jovens trans peçam ajuda sobre como contar para as mães que são transexuais. Thamirys afirma que costuma aconselhar a apresentar a transexualidade aos pais por meio filmes, séries e livros, antes de sair do armário diretamente. “Eu falo para ser sincero, dizer o que sente. E deixo meu telefone e digo que é para a mãe me ligar, porque eu estou com ela.”

    Falta de normas específicas

    Além de dar acolhimento a essas famílias, a ONG orienta em questões burocráticas e reivindica políticas públicas para as crianças trans, que Thamirys afirma serem inexistentes. Apesar de o Brasil ter um Estatuto da Criança e do Adolescente reconhecido internacionalmente, uma rede de proteção robusta de conselhos tutelares e um sistema de saúde universal, políticas específicas para crianças trans ainda se fazem necessárias, defende ela, que vê a comunidade refém do bom senso de agentes públicos.

    “Infelizmente, a gente enxerga a pauta da criança e adolescente trans como uma pauta de costumes, e, em pauta de costumes, a atuação é via preconceito, via estigmas religiosos, via tabus, via achismos. A gente precisa tirar a pauta da criança e do adolescente trans dos costumes e migrar para a dignidade humana, e, aí sim, esses direitos todos estabelecidos e já reconhecidos poderão ser aplicados”, argumenta ela “Quantos pediatras falaram absurdos para mães em consultórios médicos, quantas escolas. A gente teve um caso em que uma juíza, em uma audiência de retificação, falou para uma menina de 16 anos: ‘eu vou até alterar seu nome, mas você nunca vai ser mulher de verdade’. Então, quando o Estado falha no seu bom senso, nós precisamos de normativas claras, para não ter dúvidas. E o Estado falha em reconhecer a transgeneridade em sua integralidade, e a infantojuvenil mais ainda. Então, em muitas situações, a gente tem que contar com o bom senso. E, só com o bom senso, está difícil.”

    Thamirys mantém um perfil no Instagram em que publica conteúdos sobre o trabalho da ONG Minha Criança Trans.

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    Mães pela Diversidade

    A trajetória de Thamirys e a da ONG Minha Criança Trans é parecida com a das Mães pela Diversidade, grupo formado principalmente por mulheres que são mães de pessoas da sigla LGBTQIA+ e que reivindicam os direitos de seus filhos sem tirar seus protagonismos. É o caso da professora de educação infantil Maria Cecília Castro, mãe do Caio, de 13 anos, que sempre se incomodou com roupas femininas e com o nome com que foi batizado. Pesquisadora do tema em sua dissertação de mestrado, ela conta que estudar não facilitou tanto as coisas para a maternidade.

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    A professora Maria Cecíclia Castro, coordenadora do Mães pela Diversidade no Rio de Janeiro, com o filho Caio, de 13 anos – Fernando Frazão/Agência Brasil

    “Ele sempre se desenhou e fez seus autorretratos como um menino, e eu conversava pra entender e ele dizia sempre, desde muito pequeno, que gostaria de ter sido menino, que gosta das coisas de meninos, que ele era forte. E eu fazia um movimento de mostrar grandes mulheres, mulheres fortes, como a própria Rita Lee, a Frida, mulheres de luta, vanguarda, liberdade, e ele dizia que não era uma mulher guerreira e forte, que era um menino”, lembra a professora, que mora em Niterói, no Rio de Janeiro. “Quando ele entra na escola, ele não queria usar o nome dele de registro. E ele teve uma estratégia muito inteligente de pedir para os amigos chamarem pelo sobrenome. E chamavam ele de Pereira. Me deu um susto como ele se organizou para se sentir um menino trans. E, entre os meninos, não tinha preconceito. Os colegas sempre o acolheram de uma forma muito afetuosa.”

    Durante a pandemia, ela conta que Caio se sentiu muito perturbado pelo isolamento, com momentos de agressividade. Foi então que o filho mostrou a ela uma carta que tinha escrito para si mesmo no futuro, em um exercício de cápsula do tempo proposto pela escola.

    “Ele abre essa carta, e, nela, ele já se chama de Caio. Isso me chocou, porque é uma carta linda e emocionante. Eu lembrei muito da história do João Nery, conhecido como o primeiro homem trans a fazer uma cirurgia. E, a história dele, ele conta em um livro chamado Uma Viagem Solitária, e eu lembrei de todo o sofrimento do João. E, aí, eu falei pra ele: ‘Filho eu queria que você soubesse que a sua viagem não vai ser solitária. Você não vai estar sozinho’”, lembra ela, emocionada.

    Luta coletiva

    A chegada ao Mães pela Diversidade, em 2020, se deu na busca por entender melhor como colocar na prática da maternidade os conhecimentos que ela já tinha por meio da jornada acadêmica. E também para esclarecer dúvidas sobre a própria transição de gênero e suas questões de saúde e documentação. Na ONG, ela se somou a um coletivo de cerca de 2 mil mães – e alguns pais – que se dividem em grupos de trabalhos e acolhimento ligados às identidades de gênero e orientações sexuais de seus filhos e também às suas especializações profissionais, quando podem ajudar uns aos outros.

    “Aí, a minha vida muda completamente. E eu aprendo muito com essas mulheres”, conta ela, que a partir do grupo encontra profissionais de saúde especializados e sensíveis à transgeneridade e descobre o que precisa fazer para resolver questões como a mudança do nome do filho no diário escolar. “O importante disso tudo é como vamos acolher nossos filhos, filhas e filhes. E que as mães comecem a pensar que amor não tem negociação.”

    A atuação coletiva em manifestações, audiências públicas e movimentos que defendem os direitos de seus filhos ajuda também as mães a se fortalecerem contra um discurso de culpabilização, que ela descreve como frequente. “A gente escuta muito ‘foi você que criou errado. A sua criação deu errado. É uma família desestruturada. Existe algum problema que tem que ser investigado’. Não se entende que isso é da pessoa, e se diz que isso é um problema que tem que ser corrigido”, critica Maria Cecília. “A gente faz uma luta para que outras famílias que têm dificuldade de fazer esse acolhimento saibam que está tudo bem, que não é um problema, que não é um desajuste, e que o amor é o pilar de todas as relações. É uma organização que não tem cunho partidário, religioso nem a pretensão de falar pelos filhos. O acolhimento dessas famílias é o que nos move.”

    Maria Cecília reconhece que todo o seu esforço construiu um ambiente de proteção e acolhimento para o filho dentro de casa, mas que a militância mostra todos os dias que o mundo não é um lugar seguro para pessoas trans. “O medo é latente a qualquer mãe. E, quando você tem um filho trans, esse medo é muito mais potencializado. Todos os dias eu temo pela integridade física do meu filho. Mas eu não posso segurá-lo numa gaiola. Então, o meu papel é o de fortalecimento, é um trabalho para que entenda os seus direitos, crie uma rede de apoio que vai estar com ele, que ele saiba o que tem que fazer se sofrer preconceito, e mostrar que ele não está sozinho. Ele tem a mim, à família dele, e a organizações como o Mães pela Diversidade. Meu trabalho é falar para o Caio que ele é um menino trans, é um menino lindo, é um menino que não tem problema nenhum e que ele precisa estar atento e forte.”

    Solidão materna

    A mobilização das Mães pela Diversidade na Parada LGBTQIA+ de São Paulo foi o que permitiu que a advogada Regiani Abreu as encontrasse. Mãe do menino trans Luca, que hoje tem 14 anos, ela descreve que, na época da transição, lidava com uma intensa solidão ao não saber como conduzir uma situação da qual ela achava saber tudo, já que estava na terceira experiência como mãe.

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    Como advogada, Regiani Abreu percebeu que poderia ajudar outras mães de crianças e adolescentes trans – Divulgação

    “Minha motivação ao me aproximar não foi política. Foi uma busca de outras mães. Porque esse lugar da mãe de trans é muito solitário. Embora eu tenha tido em toda a trajetória a parceria do meu companheiro, pai do meu filho, há uma solidão materna. Porque você nunca sabe se o que você está fazendo é correto. Já há muita culpa no exercício da maternidade. Então, eu precisava encontrar outras mães”, conta ela, que passou a participar do grupo em São Paulo, onde mora. “No meu vocabulário de advogada branca e de classe média, nem a palavra trans existia. Embora eu fosse uma pessoa que tivesse simpatia pelas causas LGBTQIA+, eu não tinha conhecimento. Eu conhecia apenas as travestis que estavam trabalhando na rua. Eu não tinha contato nem com a linguagem. Era uma distância imensa.”

    Participando das discussões, ela descobriu que sua formação como advogada poderia ajudar muitas outras mães. Regiani ajudou o grupo a criar, por exemplo, um modelo de notificação de nome social para ser entregue em escolas, para que outras mães soubessem como exigir respeito a identidade de seus filhos.

    “Nossas famílias são vistas como possíveis de proporcionar entretenimento. Falar de uma criança trans para alguns setores da sociedade causa likes, causa engajamento nas redes sociais, e as nossas famílias infelizmente são muito usadas por esses grupos. Os ataques passaram a ser muito organizados e foi necessária uma atividade política e de engajamento mais organizada. Hoje, o Mães pela Diversidade atua, por exemplo, na elaboração de políticas de saúde. Ele atua como amicus curiae em ações em que somos atacados por esses setores”, explica. “E nós, do Mães pela Diversidade, não somos as pessoas, somos as famílias. Então, temos sempre que nos colocar atrás deles. Nunca assumindo um protagonismo que é deles. Eles é que vão direcionar, e nós vamos atuar.”

    Regiani conta que a defesa dos direitos trans acaba entrando em casa com a rede de contatos e as reuniões do grupo, e passa para seu filho também por meio da educação parental. “Ele é uma pessoa de 14 anos muito apropriada de si, com muita certeza da importância que ele tem como ser humano, pessoa e titular de direito. Isso se reflete na atuação dele na vida, por exemplo, na escola”, conta ela, que deixa claro que isso não significa puxar seu filho para sua militância, e, sim apoiá-lo e orientá-lo sempre que ele solicitar. “Agora, ele precisa crescer. Mas toda vez que ele me chamar para estar do lado dele, na militância dele, eu vou. Não posso trazer ele para a minha. Mas ele, por exemplo, é representante de classe. Então, eu vejo que está frutificando.”

    Na mesma situação em que ela esteve um dia, outras mães solitárias, assustadas ou inseguras chegam aos grupos de apoio de que agora Regiani participa. Esses grupos são localizados em cada estado, e divididos por letra da sigla LGBTQIA+. Essas mães são acolhidas, passam por uma checagem de que de fato são mães de filhos LGBTQIA+, e, só então, elas são incluídas nos grupos. A partir do acolhimento e do fortalecimento dessas mães, é criado um senso de coletividade, e essas mulheres costumam se tornar ativistas que se dispõem a participar de atos e ações a favor de outras famílias e da causa.

    “Essas mães chegam muito doloridas. Com problemas nas suas relações afetivas, muitas vezes, porque há um embate com um companheiro que não aceita. E ela vê a dor do filho e percebe que é uma situação insustentável. Quando ela chega no Mães, ela já viu que era uma situação irreversível e que a criança, jovem ou adulto está sofrendo demais”, conta ela, que lamenta que muitas mães preferem rejeitar seus filhos do que seguir o caminho do entendimento e do amor.

    “Eu vejo com imensa tristeza e dor, porque esses pais e essas mães estão esquecendo que uma pessoa não é só LGBT, que um filho é tão precioso, tão raro e é tanto. Dentro de um filho tem tanto, que ser LGBT é só uma coisinha. Eu sinto mais por esses pais do que por esses filhos, porque eles estão perdendo pessoas tão raras, tão preciosas, tão grandes, tão intensas, com tanta potência. Pessoas que, apesar dos abandonos, estão trabalhando, criando, escrevendo, fazendo arte, dançando. Essas pessoas são tão grandes e têm essa motricidade do sentimento, de ter visitado lugares em que eu nunca vou estar, que elas vão encontrar outras famílias. Elas vão construir laços tão bons, que vão substituir essa família. E essa família é que perdeu. Esse pai e essa mãe que perderam. Quando eu falo com esses pais, eu sempre digo isso. O meu filho joga vôlei, anda de skate, gosta de jogar videogame, gosta de conversar com os amigos, gosta de ir à praia. Ele é tantas coisas e tanto mais do que só isso que vale estar junto, vale estar dentro. Eu quero estar com ele. Eu quero ver essa pessoa acontecer. É uma honra ter o meu filho, os meus três filhos.”

    Edição: Juliana Andrade

  • Pediatras alertam para aumento de desafios perigosos na internet

    Pediatras alertam para aumento de desafios perigosos na internet

    Divulgados e ampliados com rapidez por meio de imagens, vídeos ou jogos online e em diferentes plataformas, os chamados desafios promovidos via internet podem causar risco à vida, à integridade física e psicológica e, em alguns casos, fatalidades ou danos irreversíveis a crianças e adolescentes. O alerta é da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

    A proposta de desafios perigosos nas redes, como a própria entidade os intitula, é estimular a prática de comportamentos de risco e autoagressivos, muitas vezes sob a falsa impressão de atitude inofensiva ou até mesmo de brincadeira. Para os pediatras, como a maioria desses desafios convida à agressão física ou psíquica, eles devem ser considerados violência e crime.

    A SBP cita pesquisas observacionais da internet realizadas nos Estados Unidos, na França e no Brasil que descreveram mais de 100 maneiras de nomear esses desafios. Os padrões de comportamento de risco mais frequentemente identificados entre os adolescentes são: práticas de sufocamento, asfixia ou apneia; práticas de autoagressão ou heteroagressão; e ações como o uso de pílulas mágicas com teor desconhecido de pó branco ou colorido, jantares com detergentes como bebidas e pastilhas de sabão como refeição, engolir chips e bolinhas magnéticas e dangerous selfies, dentre outras.

    Entre as recomendações da entidade para evitar fatalidades entre crianças e adolescentes está a atualização da comunidade médica, especialmente dos pediatras, para que possam orientar, durante as consultas, sobre prevenção dos riscos e segurança online.

    “Também é fundamental a conscientização sobre riscos on-line para os educadores escolares, psicólogos e profissionais da área de saúde mental que trabalham com crianças e adolescentes em diferentes comunidades e circunstâncias”, avalia a SBP.

    A entidade ressalta ainda que os pais são responsáveis legais e morais pelos cuidados dos filhos e que precisam estar presentes na supervisão das atividades deles nas redes digitais, com regras claras na convivência diária sobre segurança, privacidade, bloqueio de mensagens inapropriadas, violentas ou discriminatórias, que possam causar danos físicos ou mentais, e com a orientação para a não prática de desafios.

    “Em uma sociedade em que a força do corpo e do poder faz parte da cultura, assim como testar os próprios limites como prova de coragem sem medir as consequências do perigo reflete uma atitude peculiar na adolescência, precisamos estar mais alertas na análise dos ‘desafios perigosos’ e das consequências dos ‘jogos mortais’.”

    Edição: Juliana Andrade